Execução extrajudicial de títulos fundiários no financiamento agrícola

 

            O custo do capital para financiar a agricultura é determinante na sua competitividade. Independente de qual for o sistema de crédito vigente e seu ambiente institucional, a conta do custo do capital concedido à agropecuária terá de ser paga, seja via consumo ou impostos. No entanto, o montante a ser despendido pela sociedade para custear a produção agropecuária pode variar conforme a eficiência do sistema de financiamento da produção, armazenagem e comercialização agrícola. 


            O Instituto de Economia Agrícola (IEA) desenvolve uma linha de pesquisa que trata da eficiência dos mecanismos de financiamento da agricultura. Dentro desse tema, o processo de execução das dívidas do financiamento agrícola, que é parte relevante no custo de transação do crédito, tem um tratamento especial e inédito associado à questão fundiária. 


            A evolução desses mecanismos e de sua eficiência passou por um longo histórico de políticas públicas e arranjos privados. Observa-se nesse percurso que o sistema de crédito foi moldado não só pela política macroeconômica mas, principalmente, pela composição de grupos de interesses. Instrumentos de crédito, no Brasil, foram envolvidos por uma cultura bem menos capitalista do que se imagina. 


            A política de desenvolvimento industrial via modernização da agricultura forjou um sistema de crédito rural, no qual o paternalismo associado ao patrimonialismo brasileiro criou a política de crédito estatal que eliminou as sinalizações que ofereceriam maior eficiência na aplicação de recursos. Criou-se, portanto, uma enorme ineficiência no uso desses recursos, além da má reputação das políticas públicas de crédito rural e da cultura de concentração e distorção do uso do crédito rural. 


            A crise fiscal brasileira trouxe um novo mundo ao financiamento do agronegócio. Um mundo em que o mercado começou a dar as sinalizações necessárias para impulsionar toda a estrutura produtiva anteriormente instalada a custos negativos. Novos arranjos de financiamento privado emergiram entre agroindústria e produtores. Estas transações passaram a contar com um custo de capital relevante, que expressa, além da conjuntura macroeconômica, os riscos e garantias envolvidas. 


            Um dos riscos mais eminentes está nos custos de recuperação do recurso financiado. Estes custos são relativos ao tempo de recuperação, às custas judiciais e à incerteza1 quanto a sua concretização. Tais custos são embutidos na taxa de juros cobrada na operação de crédito, em função da classificação do tomador de crédito em relação à sua capacidade de pagamento. 


            As políticas públicas da década de 1960, como a do crédito subsidiado à grande propriedade, de um lado, e a proteção ao arrendatário e ao 'uso social da terra', de outro, tornaram incerta a transação de arrendamento em face da perda dos direitos sobre a propriedade. Além disso, o regime da CLT foi estendido ao trabalho rural mesmo que sazonal. Tais políticas causaram uma combinação perversa, na década dos anos setentas, pois se criaram incentivos à produção mecanizada em larga escala intensiva em capital. 


            Houve, portanto, em face das políticas de crédito rural, trabalhistas e fundiárias2, não somente a concentração da propriedade e do uso da terra, mas também a ausência de um mercado de arrendamento de terras para a agricultura intensiva em mão-de-obra. Perdeu-se assim uma oportunidade, pois foi nessa época que se ensaiava um mercado financeiro, que poderia ter absorvido os recursos de mobilização do capital investido em terra para financiar tanto a indústria quanto a própria agricultura. Isto, evidentemente, se o sistema de crédito rural tivesse sido desenhado para financiar tanto a aquisição de títulos de terra, que teria sido liberada para a produção diversificada, quanto a aquisição de máquinas e insumos. 


            Entretanto, não há um arcabouço legal que dê respaldo à transferência da titularidade da terra de forma líquida e certa. O produtor rural que tem a terra como colateral físico de alavancagem, para ser oferecido como garantia, enfrenta um alto custo de transação. É que o seu ativo não oferece garantia líquida e certa, pois não é comercializado como um título ao portador, mas como um imóvel, sujeito a um moroso processo de execução. Logo, passa a ser um subterfúgio ao oportunismo por parte de produtores que ainda têm o respaldo legal de impetrar recursos na justiça para postergar a decisão judicial final. 


            Pior do que isso, o Judiciário brasileiro pode, em nome da 'justiça social', dar causa à parte de menor poder econômico - dependendo da desproporcionalidade de poder econômico das partes contratantes -, mesmo que esteja violando contratos, ao invés de garantir o cumprimento dos mesmos. Assim, elevam o valor do custo do crédito a ser financiado a um patamar não compensatório no sentido produtivo, tendo em vista a disponibilidade do bem dado em garantia. 


            Na agenda mínima de reformas para fomentar o crescimento no Brasil, insere-se a questão do custo do investimento com uma função do custo e dos prazos do crédito.3 A escassez do crédito se deve à instabilidade macroeconômica e aos elevados déficits públicos. 


            Além dos altos juros, há a questão do alto spread de risco que pode ser atribuída à falta de proteção dos direitos de propriedade dos credores e da regra de lei. De fato, os spreads bancários, no Brasil, estão entre os mais altos do mundo, quando se analisa sua posição em qualquer componente do spread. A composição desses spreads, no Brasil, é de 14% de despesas administrativas, 28,7% de impostos, 17% de custo da inadimplência e 40,2% de lucros. Para o caso do custo da inadimplência, o Brasil está em 13O lugar na provisão para devedores duvidosos, entre 76 países. 


            A inadimplência, fator que eleva o spread de risco, depende da qualidade das informações acessíveis aos fornecedores de crédito sobre os candidatos4 a tomadores de crédito. E mais importante é 'a proteção do credor por meio de garantias dadas em um empréstimo. É necessário existir um instrumento realmente poderoso para reduzir o risco da operação do ponto de vista do credor. Isso passa por melhorar os registros de ativos e o acesso a eles, principalmente por reformas legais e jurídicas que facilitem a execução de garantias em caso de inadimplência.'5

Recuperação de financiamentos na agricultura

            O processo de recuperação dos financiamentos, no Brasil, tem grandes entraves criados dentro do sistema judiciário, o que não é privilégio do financiamento da agricultura. A Nova Lei de Falências é uma tentativa de possibilitar mecanismo de recuperação, barateando os juros na transação do crédito. Em particular, o Projeto de Lei No 4497/2004, que trata da execução de títulos extrajudiciais e altera os dispositivos da Lei No 5869/1973 do Código de Processo Civil. 


            A Execução de Títulos Extrajudiciais é uma modalidade que visa agilizar o processo de execução, eliminando o acesso a mecanismos protelatórios. Segundo o Projeto de Lei No 4497/2004, a proposta é conceder ao credor direito de indicar os bens do devedor a serem penhorados e de obter certidão gravada com os bens do devedor até o valor da dívida. 


            A questão que se coloca é se o desenho da lei propiciará a criação de um título executável como garantia líquida e certa, para que se torne um ativo comercializável no mercado financeiro e não só de alavancagem de crédito rural. Mas, também, se questiona se será possível que o título da terra se torne um instrumento líquido para a melhor alocação tanto do uso da terra no sistema produtivo quanto da utilização do crédito pelos mais eficientes. 


            Afinal, trata-se de ressuscitar e tornar elemento determinante da dinâmica econômica o capital morto representado pela propriedade imobiliária. Com isso, o Brasil superaria uma característica de países pobres, segundo a qual, paradoxalmente, as pessoas pobres têm enorme massa de ativos que não são utilizados para mover a criação de riquezas6.7

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1 Há incerteza na ação do Judiciário, o qual pode utilizar o argumento da 'justiça social' em favor da parte que tenha quebrado um contrato, ao invés de dar a causa em favor de quem teve o prejuízo em razão da ação de quebra contratual do arrendatário ou inadimplente.
2 Rezende, Gervásio Castro. Política trabalhista e fundiária e seus efeitos perversos sobre o emprego agrícola, a estrutura agrária e o desenvolvimento territorial rural no Brasil. IPEA. Texto para discussão, N. 1108. Rio de Janeiro, agosto de 2005. 31p.
3 Pinheiro, Armando Castelar. Por que o Brasil cresce pouco? In: Reformas no Brasil: Balanço e Agenda. Giambiagi, F.; Reis, J. G; Urani, A. (orgs.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004. cap. 2, pp.25-58.
4 A classificação de risco em relação à capacidade de pagamento do produtor rural é uma análise que leva em consideração a conjuntura das margens de comercialização dos produtos agrícolas e à disponibilidade das garantias. Em geral, as garantias disponibilizadas pelos produtores rurais são a terra e, em casos específicos, podem ser o produto agrícola ou a máquina financiada.
5 Idem nota 3
6 A idéia de capital morto foi desenvolvida na comparação ente economias de países desenvolvidos e pobres, realizada por De Soto, Hernando. Listening to the barking dogs: property law against poverty in the non-West. Focaal – European Journal of Anthropology. No. 41, pp. 179-185, 2003.
7 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-013/2006.

Data de Publicação: 20/02/2006

Autor(es): Thomaz Fronzaglia (thomazfronzaglia@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor