Carne Cultivada: uma possibilidade?

            Um dos papéis de uma instituição de pesquisa como o Instituto Economia Agrícola é de procurar com certo grau de antecipação identificar aquilo que está ocorrendo na área do desenvolvimento científico e tecnológico no campo da agricultura e alertar a sociedade para os eventuais impactos econômicos, sociais e ambientais que poderão ocorrer.

            Este ensaio buscou em fontes que podem ser consideradas as mais atualizadas informações sobre uma possibilidade de desenvolvimento científico e tecnológico em suas aplicações na agricultura. Estas são cada vez mais impressionantes e rápidas como decorrência do acelerado desenvolvimento da tecnociência. As tecnologias convergentes compreendendo a biotecnologia, nanotecnologias, informática e micro-eletrônica permitem que se vislumbre a prazo não muito longo o estabelecimento da 'agricultura inteligente'1.

            Há autores que até já se arriscam a estabelecer o período de tempo (medido em anos) para que drásticas mudanças tecnológicas possam acontecer. Procuram tornar visíveis os possíveis horizontes para a real aplicação das inovações desenvolvidas pelas tecnologias convergentes através do surgimento de produtos nanotecnológicos que poderão ser utilizados pelo setor agrícola.

            Há entretanto, aspectos ainda relacionados com as biotecnologias que não foram suficientemente explorados e esclarecidos quanto ao real alcance de suas aplicações. O debate sobre os transgênicos seguiu por um caminho viesado que acabou, segundo Wilkinson por 'juridificar' a questão. Nesse processo de discussão os grupos que são a favor dos transgênicos apresentam seus argumentos, e os que são contra apresentam os seus e a questão acaba indo parar no poder judiciário que no caso é o que menos entende da questão.

            As biotecnologias, assim como, as nanotecnologias e a junção das duas que resulta nas nanobiotecnologias apresentam potencial quase que desconhecido e o seu alcance em termos de impactos econômicos, sociais e ambientais em todas as atividades humanas poderão ser imensos.

            Essas tecnologias poderão rapidamente ir muito além das biotecnologias e industrialização da agricultura e se transformar em elementos essenciais para a concretização da próxima geração de verdadeiras 'fábricas' de animais e plantas independentes dos processos biológicos naturais atualmente dominantes.

            Considerou-se oportuno esclarecer com antecipação aos agricultores e demais elos da cadeia de produção das carnes para que estejam bem informados e atualizados quanto aos avanços que estão ocorrendo no campo das tecnologias agrícolas. Muitos desses avanços estão bem além daquilo que podem encontrar normalmente nas notícias de jornais, revistas e outros meios de comunicação. E é justamente esse tipo de notícia que acaba por informá-lo e por formar sua visão quanto ao futuro do seu agronegócio.

            O que se destaca no texto é que existem possibilidades bastante concretas de ocorrer não apenas mais uma nova 'onda' tecnológica, mas um verdadeiro 'Tsunami' tecnológico2 que o público em geral e os próprios agricultores sequer imaginam que possa um dia existir.

            Na sociedade brasileira o mais acirrado debate atualmente existente, no campo da agricultura refere-se às novas tecnologias e gira em torno da utilização ou não de insumos de origem transgênica na agricultura e sobre a necessidade ou não da sua regulação. E a principal característica desse debate, quando existe, desenrola-se como um embate entre o campo científico e o político.

            Nesse contexto e na busca de saídas mais conciliadoras, há espaço até mesmo para a qualificação das biotecnologias. Atualmente, é possível encontrar na Internet, sites e artigos sobre a denominada 'Biotecnologia branca' ou em inglês 'White biotechnology'3. Esses artigos procuram demonstrar uma diferenciação de propósitos em relação às biotecnologias da forma como têm sido vistas por grande parte do público, visualizadas principalmente pelo debate sobre as sementes transgênicas (em especial as da soja) e as células tronco.

            Há entretanto, ainda no campo das biotecnologias aspectos que não foram sequer debatidos, mas que estão sendo alvo de investimentos em pesquisas por parte de organizações e empresas que acreditam poderem auferir lucros.

            O que motivou este ensaio foi uma recente notícia que informa a existência de uma organização norte-americana de pesquisa, sem fins lucrativos, a 'New Harvest', fundada em 2004, que financia pesquisas com o objetivo de desenvolver substitutos da carne.

            Isso inclui a cultura da carne, ou seja carne produzida in vitro ao invés de um animal. Como esses substitutos da carne são produzidos em condições controladas impossíveis de serem mantidas em fazendas tradicionais, a carne produzida pode ser mais segura, mais nutritiva menos poluente do que a produzida convencionalmente. Ademais não haveria sofrimento para os animais. Essa organização espera conseguir no longo prazo alternativas competitivas para a produção convencional de carne. Essa organização tem em seu quadro pesquisadores cientistas nas áreas de biologia, agricultura, saúde pública e medicina4.

            Uma pergunta que surge imediatamente quando se fala de cultura de carne é: se essa carne é artificial? A resposta é de que esse tipo de carne in vitro é tão artificial quanto são o pão, o queijo, o yogurt e o vinho. Todos esses produtos envolvem processamento de ingredientes derivados de fontes naturais. Possivelmente, a produção de cultura de carne não seja menos natural do que criar animais nas fazendas em sistemas confinados intensivos, injetando-os com hormônios sintéticos, alimentando-os com dietas artificiais feitas com antibióticos e restos animais. Ao mesmo tempo, a produção convencional de carne conduziu a numerosos problemas não naturais, incluindo altos níveis de doenças isquêmicas do coração, assim como, poluição das águas e do solo através dos resíduos dos animais.

            Essa organização, a 'New Harvest' financia pesquisas realizadas nas Universidades de Eindovem, Amsterdan e Ultrecht buscando desenvolver novos meios de cultura, biorreatores e métodos de construção de tecidos para a produção de carne cultivada5 de modo a trazê-la mais próxima da realidade.

            Segundo a pesquisadora Marianne Heselmans, 'alternativas vegetarianas para a carne terão de competir com a carne artificial' isso porque as universidades já citadas estão trabalhando para cultivar músculos a partir de células de porco. Afirma também que em breve será possível dispor de instalações semelhantes às padarias para a produção de carne e que 'à noite colocamos algumas células de porco em um bioreator aquecido, e na manhã seguinte temos carne moída de porco. Durante a noite, poderemos dormir tranqüilos, sem nos sentirmos culpados quanto aos porcos estressados e com os vastos campos, uma vez que as células tronco dos porcos se transformarão em mioblastos, os mioblastos se transformarão em pequenas fibras de músculos que formarão o tecido'.

            O professor de ciências da carne Henk Haasman, da Universidade de Ultrecht considera que essa idéia não é mais bizarra, pois já foram destinados dois milhões de Euros para essas pesquisas e que em seis anos já se poderá ter os produtos. Não se terá 'filet', mas um tipo de carne moída sim.

            Uma vantagem da carne cultivada será a possibilidade de se controlar o conteúdo de gordura e a qualidade da gordura. Também as possibilidades de infecções são menores uma vez que os biorreatores podem ser mantidos em condições esterilizadas, ao contrário dos ambientes das fazendas e dos abatedouros.

            Destaque-se que isso ainda está ocorrendo no campo das biotecnologias na busca da fabricação de alimentos através de um processo sem a utilização do solo, sementes, fazendas e fazendeiros sendo que as nanotecnologias podem atuar nesse mesmo sentido, mas em outra escala e forma de produção.

            Alguns autores afirmam que no futuro a engenharia molecular que faz parte das nanotecnologias nos capacitará para 'produzir' quantidades ilimitadas de alimentos6. E isso permitirá eliminar a fome do planeta.

            A literatura levanta a existência do problema relacionado ao sabor da carne produzida in vitro. Nesse sentido há referências que revelam o desenvolvimento de pesquisas realizadas por Pieter Edelman da Universidade de Waningen na Holanda, Douglas McFarland da Universidade Estadual da Dakota do Sul, Vladimir Mironov da Universidade da Carolina do Sul e Jason Matheny da Universidade de Maryland propuseram na revista 'Tissue engeneering' duas novas técnicas que poderiam produzir carne com gosto semelhante a natural, mas sem a necessidade de ter de se matar os animais.

            O pesquisador Matheny, que estuda economia agrícola e saúde pública, considera que 'haveriam muitas vantagens com a carne cultivada. Poderia se controlar, por exemplo, o elevado teor de gorduras prejudiciais substituindo pelo Omega 3'. A idéia de se produzir carne in vitro decorre do objetivo de se obter um produto de aspecto, sabor e textura semelhante à carne natural de gado, porco, carneiro, aves, peixe etc. Segundo esse pesquisador, as necessidades de energia para produzi-las seria muito menos do que a necessária para a produção natural. Pesquisas da NASA demonstraram que esse tipo de produção é possível7.

            Segundo esses pesquisadores, um dos problemas para esse tipo de produção em larga escala, é que seriam necessárias células de vários tipos de tecidos de modo que a carne cultivada ficasse com uma textura semelhante a da natural. Seria necessário inclusive encontrar uma forma de 'exercitar' as células musculares, pois para se obter uma textura correta, as células teriam que ser tracionadas como ocorre quando os animais se movimentam.

            Conseguindo-se a produção em larga escala os benefícios seriam enormes, pois a demanda por carne está crescendo no mundo e em especial na China.

            O professor Matheny considera que 'a principal vantagem seria que com apenas uma única célula seria possível suprir a demanda mundial de um ano e que essa forma de produzir traria benefícios para a saúde e meio ambiente'.

            Finalizando essas considerações fica a questão sobre o porque uma organização como a 'New Harvest', que atua financiando pesquisas de longo prazo em um campo tão avançado como as biotecnologias, deixa de lado as pesquisas em nanotecnologias e suas aplicações no campo da agricultura, inclusive na produção da carne através de nanofábricas. Seria também importante que paralelamente estivessem sendo realizadas pesquisas sobre os possíveis impactos econômicos, sociais e ambientais dessa forma de produzir alimentos.
_______________________________________________________________

1DULLEY, R. D. Nanotecnologia e agricultura inteligente. Disponível em: <http://www.iea.sp.gov.br/out/verTexto. php?codTexto=2905>. Acesso em: 27 jun. 2007.
2Ver ETC GROUP. Down on the farm: the impact of nano-scale technologies on food and agriculture. Disponível em: <http://www.etcgroup.org/en/materials/publications.html?pub_id=80>. Acessado em: 27/06/07.
3FRAZZETO, G. White biotechnology. EMBO reports, v. 4, n. 9, p. 835-837, 2003. Disponível em: <http://www.nature.com/embor/journal/v4/n9/full/embor928.html>. Acesso em: 31 maio 2007.
4New Harvest: advancing meat substitutes Disponível em: <http://www.new-harvest.org/default.php>. Acesso em: 22 jun. 2007.
5NEW HARVEST: Pesquisa. Disponível em: <http://www.new-harvest.org/research.htm>. Acesso em: 27 jun. 2007.
6AZoNanotechnology Article – Molecular Food manufacturing – an overview from opinions from industry experts: MORARU, C. I. da Universidade d Cornell considera que 'nanomáquinas poderão criar quantidades ilimitadas de alimentos através da síntese me nível atômico, permitindo erradicar a fome'; MULHALL, D em 'Our molecular future' considera que 'a biossíntese molecular e a robótica permitirão uma rápida reposição da produção de modo que não será preciso depender d e sistemas centralizados de produção e distribuição de alimentos. No inicio, nos estágios primitivos da montagem molecular, construiremos estufas radicalmente diferentes das existentes no presente que permitirão a produção individual e localizada por parte de milhões de pessoas que não sabem nada sobre agricultura. E num segundo estágio a produção molecular, a síntese de alimentos poderia ocorrer diretamente sem o cultivo de plantas e criação de animais'; RUDOLPH, M. J. Director da DuPont Food Industry Solutions, na ‘Food Technology’, de Janeiro de 2004 questiona 'porque os seres humanos não podem imitar os métodos da natureza? Ao invés de produzir grãos e gado para obter carboidratos e proteínas, nanomáquinas (‘nanobots’) podem montar o desejado bife ou farinha diretamente do carbono, hidrogênio e átomos de oxigênio presentes no ar como água e dióxido de carbono. ‘Nanobots’ (nanorobos) presentes nos alimentos poderiam circular a través do sistema sanguíneo, limpando e matando patógenos'. Disponível em: http://www.azonano.com/details.asp?ArticleID=1329#_ What_Are_the_Experts%20Saying%20About%20M. Acesso em: 26 jun. 2007.
7BRADLEY, D. Lending muscle to artificial meat production. Reactive Reports, n. 47, July/Aug. 2005. Disponível em: <http://www.reactivereports.com/47/47_1.html> Acesso em: 27 jun. 2007.

Palavras-chave: carne, biotecnologia, tecnociência.


Data de Publicação: 10/07/2007

Autor(es): Richard Domingues Dulley Consulte outros textos deste autor